Por ciúme, diarista tem corpo queimado e hoje ajuda outras mulheres
No primeiro semestre de 2022, foram registradas 31,3 mil denúncias e 169,6 mil violações envolvendo a violência doméstica contra as mulheres brasileirasEra tarde 8 de setembro de 2018, uma sexta-feira. A diarista Marciane Pereira dos Santos, à época com 36 anos, chegava cansada do trabalho acompanhada dos dois filhos, de dois e cinco anos.
Antes mesmo de entrar na casa onde morava, no bairro Jardim Tropical, em Serra (ES), ela foi abordada pelo ex-marido, com quem foi casada por sete anos e havia se divorciado havia três meses após sucessivos episódios de violência psicológica.
Inconformado com o fim da relação, e morando ainda na mesma rua, o homem quis explicações de Marciane ao saber que ela estava iniciando uma nova relação. Para evitar discutir com o ex-companheiro na presença dos filhos, a diarista conta que foi até a casa de uma vizinha, onde deixou as crianças.
"Quando eu voltei para a minha casa, ele estava me esperando na porta e nós começamos a discutir. Ele veio para cima de mim com uma faca, jogou solvente em mim e ateou fogo. Não tive tempo de ter nenhuma reação, só me lembro de ver um clarão e meu corpo começou a pegar fogo", conta.
A diarista recorda que se jogou no chão e começou a rolar no asfalto na tentativa de apagar as chamas e logo em seguida, ao ouvir seus gritos de desesperos, vizinhos tentaram ajudá-la jogando água em seu corpo.
A doméstica teve queimaduras de segundo e terceiro graus no rosto, pescoço, tronco, pernas e braços. Cerca de 40% do seu corpo foi queimado.
"Eu fiquei consciente a todo tempo e só pensava nos meus filhos", diz.
Cinco meses de internação
Devido à gravidade das queimaduras, Marciane permaneceu três meses internada em coma na UTI (Unidade de Terapia Intensiva), onde ficou entre a vida e a morte. Após acordar, ela ainda permaneceu mais dois meses internada em estado grave no centro de tratamento do Hospital Estadual Doutor Jayme Santos Neves.
A diarista passou por 18 cirurgias e teve a perna esquerda amputada devido à gravidade das queimaduras no local, por isso hoje ela se locomove com o auxílio de cadeira de rodas.
"Ainda devo passar por cirurgias plásticas para refazer o nariz, boca e orelhas. Além de procedimentos nos braços e mãos que vão ajudar a melhorar os meus movimentos, que ainda são bastante limitados. Já era para ter feito a cirurgia nos braços, mas na data do procedimento eu tive covid-19 e ainda não consegui remarcá-lo", explica.
"Apesar de o meu corpo estar diferente, eu nunca tive dificuldades em me olhar no espelho. A maior dificuldade são as limitações físicas que esse crime me trouxe, principalmente as dificuldades para cuidar de duas crianças", acrescenta.
Marciane é mãe de um menino, de seis anos, filho do homem que ateou fogo em seu corpo e de uma menina de 9 anos, fruto de um relacionamento anterior. No início da recuperação de Marciane, as crianças ficaram sob cuidado de familiares, mas atualmente moram com a diarista.
Logo após o crime, o ex-marido de Marciane foi preso pela polícia e disse em depoimento que o ocorrido foi motivado por ciúme. Em agosto, o homem foi julgado e condenado a 32 anos de prisão.
O julgamento durou mais de oito horas e o júri foi formado por sete jurados, sendo eles quatro homens e três mulheres. Marciane fez questão de acompanhar o júri de perto e ficar frente a frente com seu ex-marido pela primeira vez após o crime.
"Quando o vi eu perguntei se ele tinha noção do jeito que ele havia me deixado e ele respondeu que não. Foi um momento muito doloroso e por mais que eu tivesse consciência de que não seria fácil, eu acho que nunca estamos preparados para esse tipo de situação", recorda a diarista.
Era um homem carinhoso, mas ficou agressivo
Segundo a doméstica, no início da relação, o ex-companheiro era um homem carinhoso e tinha comportamento tranquilo. Apesar de nunca ter sofrido nenhuma agressão física antes do crime, Marciane conta que, com o passar do tempo, o homem começou a demonstrar comportamento possessivo e passou a agredi-la psicologicamente.
"Ele me xingava, gritava e eu aceitava porque o amava e também porque achava que era um momento de raiva dele, não via como uma agressão. As pessoas falavam que aquilo não era correto. Mas, eu não conseguia enxergar o que realmente acontecia na minha vida. Por isso, é importante ouvirmos quem está fora da relação, porque eles veem a situação sem o olhar do amor", diz.
Sem poder trabalhar, Marciene se dedica aos cuidados com os filhos e em ajudar outras mulheres que foram vítimas de violência doméstica ou vivem em relacionamentos abusivos.
"Faço palestras sobre violência doméstica, converso com as mulheres que enfrentam alguma situação semelhante e uso as redes sociais para chamar a atenção sobre o tema e passar mensagens de apoio àquelas que vivem em uma relação abusiva. Uso o que aconteceu comigo para conscientizá-las sobre os riscos desse tipo de relacionamento", conta Marciane.
Marciane sempre teve o sonho de estudar, mas devido às condições financeiras, nunca conseguiu cursar o ensino superior. Situação que mudou este ano após ela ganhar bolsa integral em uma faculdade da cidade e começar a cursar a graduação de Serviço Social.
"Há uns 20 anos, quando eu trabalhava como doméstica, um dia meu patrão me disse que eu era uma simples empregada e não deveria perder tempo estudando. Eu acabei acreditando naquilo e deixei meu sonho de lado. Mas, hoje eu vejo que eu posso estudar e posso ser o que eu quiser", conta.