Morre Armando Freitas Filho, um dos maiores poetas do Brasil, aos 84 anos
Morreu, aos 84 anos, o carioca Armando Freitas Filho, um dos maiores poetas do Brasil, vencedor dos prêmios Jabuti e Alphonsus de Guimaraens, da Biblioteca Nacional. O falecimento do autor se deu por complicações em seu estado de saúde.
Armando dedicou mais de seis décadas à poesia. O desejo de escrever seus próprios poemas surgiu junto com o aprendizado da leitura, aos cinco anos, “graças a meu pai, que me ensinou por dois caminhos que me abriram a porta: o dicionário e o jornal A Noite”. Na escola, em meio a uma redação e outra, já arrisca alguns versos. Mais tarde, descobriu seus “professores” de poesia: Manuel Bandeira e Carlos Drummond de Andrade. Ganhou do pai um disco do selo Festa, no qual eles declamavam seus versos, e ficou maravilhado.
Aos 22 anos, conheceu Bandeira em seu apartamento na Avenida Beira Mar. Pouco depois, encontrou Drummond na livraria São José, no Centro. Guardou com carinho as dedicatórias que recebeu. O poeta dizia que não fizera faculdade, mas era “formado em Antonio Candido”, o crítico literário paulista.
Armando estreou oficialmente na poesia em 1963 com o livro “Palavra”. À época, ele participava de um movimento literário chamado Instauração Práxis, que fazia oposição às ideias do concretismo e que defendia a substituição da “palavra-objeto” pela “palavra-energia”.
Nos anos 1970, aproximou-se da chamada poesia marginal, em ascensão naqueles anos. No entanto, preferiu não se associar a nenhuma ortodoxia poética. E não cedeu ao bom humor dos poetas marginais, como Cacaso e Chacal. “Eu não sou uma pessoa que ri. Tenho rugas desde muito cedo”, justificou certa vez. Nesse mesmo período, viveu um importante intercâmbio intelectual com a poeta Ana Cristina Cesar, que lhe “ensinou a escrever sobre a minha vontade, a não escrever copiando os outros”.
‘Poesia se mistura à prosa’
O poeta chegou a afirmar que suas maiores obsessões já estavam anunciadas nos títulos dos dois primeiros poemas de seu livro de estreia: “Corpo” e “Casa”. A casa de infância, aliás, retornou em sua “trilogia da memória”, formada pelos livros “Dever” (2013), “Lar” (2009) e “Rol” (2016). Neste último, o primeiro lar surge em vários poemas que remetem à família do poeta: “A porta fechada é o pai/ A fechadura é a mãe/ A chave é o filho, sem cópia”. Outros versos retratam os efeitos do tempo sobre o corpo: “O rosto final se esboça no velho/ espelho da noite, antes do sono”. Atando as pontas da vida, da infância à velhice, Armando encara seu tema central neste livro: “a morte/ não tem poros”.
Em 2003, reuniu sua (então) obra completa em “Máquina de escrever”. Ao completar 80 anos, em 2020, lançou “Arremate”, com poemas escritos entre 2013 e 2019. “Acho que esse livro pode ser o meu último", afirmou à revista ÉPOCA. Em 2017, um problema cardíaco o levara à mesa de cirurgia.
Em “Arremate”, o poeta expôs sua paixão pelas artes visuais, com homenagens a obras e seus criadores, entre eles Van Gogh. Também incluiu referências a escritores mestres-amigos: Drummond (“Ele é Deus, uma bíblia, como pode escrever daquele jeito?”, comentou Armando a ÉPOCA), Bandeira e João Cabral de Melo Neto. Também homenageou Ana C., Clarice Lispector, Kafka, Baudelaire, Rimbaud, Emily Dickinson e Graciliano Ramos.
Em 2022, ele estreou em um outro gênero literário: publicou a coletânea “Só prosa”. No entanto, a poesia é, mais uma vez, tema recorrente e aparece na figura de poetas amigos e na visão lírica do mundo, do tempo, da paternidade, das transformações de um Rio de Janeiro íntimo e particular. Nesse livro, o poeta criado na Urca olha para trás, recorda a sua infância no bairro, a tristeza da derrota brasileira no “concreto aparente e bruto” do Maracanã em 1950, ou a efervescência cultural dos anos 1970.
— Não consigo ver exatamente uma separação (entre poesia e prosa) — disse ele ao GLOBO na época do lançamento. — Pode acontecer uma ou outra e quem sabe uma e outra combinadas. Penso que, nos meus textos, a poesia se mistura à prosa.
“Só prosa” também trouxe confidências. Nos anos 1960, durante a ditadura, Armando passou um longo período recluso, atormentado pela insônia e pelo ódio ao regime militar. “Para tristeza enorme dos meus pais passei, aprisionado por mim mesmo, dois anos em casa sem ir à rua, escrevendo e lendo tentativas de versos copiados, noites adentro”, escreveu. O isolamento daquela época o remeteu à quarentena do coronavírus.
‘Escrever [...] é rezar com raiva’
Na longa trajetória de Armando, destacam-se ainda livros como “À mão livre” (1979), “Duplo cego” (1997), “Fio terra” (2000) e “Raro mar” (2006). Um de seus versos mais célebres diz: “Escrever [...] é rezar com raiva”. O poeta também foi pesquisador na Fundação Casa de Rui Barbosa, secretário da Câmara de Artes no Conselho Federal de Cultura, assessor do Instituto Nacional do Livro e no gabinete da presidência da Funarte (onde se aposentou) e pesquisador na Fundação Biblioteca Nacional. Os arquivos do poeta foram doados ao Instituto Moreira Salles (IMS), em 2019.
Armando chegou a se definir como um poeta “trifásico”: primeiro, escrevia tudo à mão, depois à máquina e por fim rendeu-se ao computador. Em paralelo aos livros publicados pela Companhia das Letras (sua casa havia anos), continuou investindo em projetos experimentais e edições artesanais, destinadas sobretudo a amigos. Em 2021, lançou “Cristina”, livro que celebra a esposa, Cristina Barros Barreto, saiu em uma edição artesanal, de apenas 20 exemplares. Ele também atuou como mentor de jovens poetas.
— Armando foi um poeta de porta aberta. Recebia os poetas jovens no sofá de casa. Gostava de ler, comentar, celebrar, dar sugestões, recomendar leituras. Foi extremamente generoso e incentivador — afirma a poeta Alice Sant'Anna, editora de Armando na Companhia das Letras. — Ele era um dos principais poetas brasileiros da atualidade.
A hipocondria do poeta era folclórica: não bebia e mantinha uma dieta rigorosa, uniforme, sem qualquer concessão a comidas “diferentes” ou cromaticamente chamativas. Qualquer mal-estar, ainda que rapidamente diagnosticado pela mulher como psicológico, o incomodava. Tanto que, nos últimos tempos, passou a vasculhar avidamente a internet em busca de respostas para suas cismas. Também foi apaixonado pelo Fluminense, mas já no final da vida confessou não ter mais saúde para acompanhar os jogos.
O poeta deixou a esposa e dois filhos, Carlos e Maria, e netos.
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