Por que problemas cardíacos se tornam mais comum entre jovens

As doenças cardiovasculares são responsáveis pelo maior número de mortes ocorridas no Brasil e no mundo. Elas representam cerca de 30% dos óbitos no país, segundo o Ministério da Saúde. Entre os homens, alvos majoritários do infarto, os problemas no coração e no sistema circulatório, que dão origem, por exemplo, ao AVC, aparecem entre os três motivos predominantes de mortalidade, ao lado do câncer e das causas externas (como acidentes e violência).
Embora o risco aumente consideravelmente após os 45 anos, o público masculino mais jovem está distante da margem de segurança. O que tem chamado a atenção dos especialistas é justamente a incidência crescente de infarto entre homens com menos de 40 anos, alguns deles sem histórico familiar ou fatores de risco clássicos. São pessoas em plena fase produtiva, aparentemente saudáveis, que de repente encaram um quadro grave e, muitas vezes, fatal.
Estima-se que 400 mil pessoas sofrem infarto agudo do miocárdio por ano no Brasil. E o desfecho depende, sobretudo, da rapidez no atendimento. O tempo entre o início dos sintomas e a chegada ao hospital pode ser decisivo.
A cada dez indivíduos que infartam, três morrem antes de conseguir ajuda. Dos sete que obtêm atendimento, um ainda não resiste. Mesmo entre os que recebem alta, parte passa por novos eventos ou complicações. Em muitos contextos, um terço dos pacientes pode falecer em até doze meses, especialmente por falta de seguimento adequado.
Entre os homens, o alerta se mostra ainda mais necessário. Segundo dados de 2024 da Sociedade de Cardiologia do Estado de São Paulo (Socesp), 84,44% das internações masculinas por doenças cardiovasculares ocorreram em caráter de urgência. Além disso, o número de homens internados por infarto aumentou 158% nas últimas duas décadas, um salto que revela uma crise crescente e silenciosa.
“Há três décadas, era comum vermos esses casos em homens por volta dos 60 anos. Hoje, cada vez mais frequentemente, entre os 30 e os 40. Algo mudou em relação ao estilo de vida, fazendo com que o infarto passasse a surgir de forma mais precoce”, aponta o cardiologista Álvaro Avezum, diretor do centro internacional de pesquisa e head de cardiologia do Hospital Alemão Oswaldo Cruz.
Um caso de alerta
Gabriel Polycarpo, 39, é um desses exemplos. Diretor de produção, vivia sob pressão constante no setor de eventos e, nas horas vagas, atuava como DJ. Sua rotina era marcada por jornadas exaustivas, poucas horas de sono, má alimentação, ausência de atividade física e uso frequente de substâncias como álcool e maconha, além de ketamina (um anestésico de uso humano e veterinário), ecstasy (MDMA) e 2CB. Essas drogas sintéticas atuam diretamente no cérebro, intensificando sensações de prazer, relaxamento e desinibição. O rapaz vivia no limite do corpo e da mente.
Em uma tentativa de sair do sedentarismo, começou a treinar, mas logo no segundo mês, em setembro do ano passado, sentiu dores no peito e falta de ar após uma corrida leve na esteira. Ignorou o alerta, acreditando tratar-se apenas de um efeito do esforço físico. Naquela mesma noite, participou de uma festa, consumiu drogas e álcool e partiu com a esposa para um motel. Durante a relação sexual, percebeu novamente a dor, dessa vez insuportável, irradiando para o braço e as costas. “Tive certeza de que estava infartando. Muito provavelmente o uso de drogas agravou tudo”, lembra.
No hospital, a confirmação: infarto agudo do miocárdio, com 95% de obstrução em uma artéria. Polycarpo foi submetido a uma angioplastia e recebeu um stent. Sobreviveu, mas a experiência deixou marcas profundas. “Recuperei-me fisicamente, mas o trauma psicológico foi enorme. Tive crises de pânico, fiquei paranoico, com medo constante de morrer. Hoje, uso relógio com monitor cardíaco, tomo três medicamentos por dia e faço acompanhamento médico regular. Consegui parar com todas as drogas, menos a maconha, que estou tentando reduzir com apoio profissional”, relata.
O peso do estresse
O que está por trás desse fenômeno? De um lado, temos o envelhecimento natural da população. De outro, um avanço preocupante de comportamentos e condições que aumentam os riscos de saúde, como obesidade, tabagismo, uso abusivo de álcool e estresse crônico. Quando esses fatores se somam, a probabilidade de desenvolver doenças cardiovasculares não apenas cresce como se antecipa.
O Brasil lidera, entre os 52 países analisados no estudo InterHeart, o ranking de maior impacto do estresse no perigo de infarto: 44% dos casos poderiam ser evitados com o controle e gerenciamento adequados da questão. Os quatro principais gatilhos emocionais identificados foram perda de um ente querido, separação conjugal, desemprego e ruína financeira. “Homens sob forte pressão tendem a engordar, cuidar menos da saúde e desenvolver quadros de ansiedade e depressão, o que, junto de outros fatores, aumenta ainda mais o risco de infarto”, comenta Avezum. “Tudo passa pelo estilo de vida. E o estilo de vida masculino, em comparação ao da mulher, é pior.”
Sergio Timerman, diretor do Laboratório de Treinamento e Simulação em Emergências Cardiovasculares e coordenador do Time de Resposta Rápida do Instituto do Coração (InCor), reforça a ideia. “Antigamente se dizia que doenças emocionais afetavam mais as mulheres. Hoje sabemos que isso não é verdade. A emoção é um gatilho real, um fator de risco tão importante quanto o cigarro”, afirma. “Estresse mata. Já temos ferramentas clínicas que mostram como ele afeta diretamente o metabolismo e o sistema cardiovascular.”
Hormônios e estética
Outro aspecto que vem preocupando os especialistas: o uso indiscriminado de testosterona com fins estéticos. Segundo a cardiologista Salete da Ponte Nacif, membro da diretoria da Socesp e médica do HCor, jovens têm recorrido à chamada reposição “suprafisiológica” do hormônio para potencializar a massa muscular. Ou seja, utilizam doses muito acima do necessário, mesmo com níveis normais no sangue.
“O excesso de testosterona afeta diretamente o coração: aumenta o colesterol, agride a parede dos vasos, favorece a formação de placas de gordura e eleva o risco de arritmia”, explica Salete. “Já vi pacientes jovens com parada cardíaca e lesões nas coronárias por uso excessivo de hormônio.”
A emoção é um gatilho real, um fator de risco tão importante quanto o cigarro para as doenças cardiovasculares. Estresse mata.”
— Sergio Timerman, cardiologista
Um estudo dinamarquês publicado no ano passado justifica a preocupação. Pesquisadores acompanharam, ao longo de onze anos, 1.189 usuários de anabolizantes e 59.450 homens do grupo controle. Como resultado, a taxa de mortalidade entre os usuários se mostrou 2,81 vezes maior. Timerman é direto: “A testosterona, quando usada corretamente, pode ser benéfica para quem precisa. Mas em excesso, por vaidade, torna-se um dos maiores inimigos do coração. Até água em excesso mata. Com hormônios não seria diferente”.
Fatores evitáveis, riscos reais
Hoje, os principais vilões por trás dos infartos no Brasil são identificáveis e, o mais importante, evitáveis: pressão arterial elevada, colesterol alto (dislipidemia), obesidade abdominal, estresse, depressão, sedentarismo, tabagismo, diabetes e alimentação não saudável. Juntos, esses fatores explicam cerca de 90% dos casos da questão identificada pela interrupção do fluxo sanguíneo para o coração.
“Se conseguíssemos normalizar e controlar os níveis de colesterol, poderíamos reduzir em 57% a ocorrência de infartos. Se a circunferência abdominal masculina estivesse abaixo de 90 cm, aproximadamente metade dos casos poderia ser evitada, de acordo com o estudo InterHeart Latin America”, aponta Avezum, do Oswaldo Cruz.
Apesar disso, muitos negligenciam a própria saúde. Evitam exames de rotina e resistem a buscar atendimento preventivo. Isso reflete uma desigualdade de gênero no autocuidado. Pesquisas mostram que homens, de modo geral, procuram menos o sistema de saúde do que mulheres.
Além disso, cresce entre eles o consumo de substâncias perigosas, como estimulantes, cocaína e cigarros eletrônicos, com impacto direto no coração. A privação de sono, cada vez mais comum, também contribui para desequilíbrios hormonais e inflamatórios que afetam o sistema cardiovascular.
A prevenção começa com informação, passa por mudança de hábitos e depende de uma nova relação com o próprio corpo. Praticar atividade física regular e adotar uma alimentação mais equilibrada, por exemplo, são medidas acessíveis e eficazes. É preciso quebrar o tabu de que autocuidado não combina com masculinidade. Realizar exames periódicos, conversar sobre saúde mental e escutar os sinais são atitudes que salvam vidas. E, quanto mais cedo esse cuidado começar, maiores as chances de evitar surpresas trágicas.
PORTAL SBN